segunda-feira, 17 de junho de 2019

Anotações sobre a Introdução de “A Loucura do Trabalho” (Dejours, 2014, p. 11-26): ficha crítica.


§1

Há uma passagem na Apresentação feita por Leda L. Ferreira de A Loucura do Trabalho que sintetiza bem ao gosto da Psicodinâmica de Christophe Dejours a origem do sofrimento nas organizações.

“’Quando estão bloqueadas todas as possibilidades de adaptação entre a organização do trabalho e os desejos dos sujeitos’, então, emerge um sofrimento patogênico” (Leda Leal Ferreira in Dejours, 2014, p. 10).

§2

O sofrimento no trabalho em discussão por Dejours (2014) não significa uma doença mental. O que ele chama de Sofrimento no Trabalho é o estado mental em que o trabalhador assalariado usa mecanismos de defesa para evitar que a Organização (privada ou pública) o empurre para sofrimento patogênico.

Isso não significa que Dejours tenha escrito apenas sobre sofrimento patogênico. Ele também discute o sofrimento criativo e o prazer no trabalho.

Vejamos, então, as principais assertivas desse livro na ficha crítica que hora apresentam-se.

Introdução (Dejours, 2014, p. 11-26)

§3

Parece que falar sobre sofrimento é muito mais fácil do que falar em prazer, assim como pregar sobre o inferno é muito mais fácil do que tratar do céu. Mesmo assim, o objetivo de Christophe Dejours é descrito nos mesmos sentido em que ele qualifica Sofrimento no Trabalho.
“[...] nós procuraremos divulgar aquilo que, no afrontamento do homem com sua tarefa, põe em perigo sua vida mental”. (2014, p. 11).
Não chamo de definição de sofrimento no trabalho, pois não é esse o contexto teórico, então, chamo de qualificar.

Referência:

DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Editora Cortez, 2014.

DEJOURS, Christophe. Souffrance en France: la banalisation de l'injustice sociale, éditions du Seuil, 1998

segunda-feira, 20 de maio de 2019

O Mito de Sísifo (Albert Camus, 1942) Anotações pessoais. Parte 1:"o homem absurdo".


Estou lendo esse livro O Mito de Sísifo para tentar entender como alguém cuja imensa dor começou com a morte do pai dele quando Albert Camus ainda era um bebê em Argélia e só terminou quando finalmente a tuberculose o matou poderia amar tanto a vida.

Essas notas me ajudaram muito. Espero que ajude a mais alguém.

"Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à
questão fundamental da filosofia". (Albert Camus, 1942, p. 7).

"[...] Vejo que muitas pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras que paradoxalmente se fazem matar pelas idéias ou as ilusões que lhes proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, ao mesmo tempo, uma excelente razão para morrer). Julgo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas". (Albert Camus, 1942, p. 8).

"O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma tarde ele dá um tiro ou um mergulho". (Albert Camus, 1942, p. 8).

"O que é verdadeiro para sentimentos já especializados o será mais ainda para emoções" [...] (Albert Camus, 1942, p. 12).

"Ensina-nos que um homem se define tanto por suas comédias quanto por seus impulsos sinceros". (Albert Camus, 1942, p. 13).

[...] "afirmando que tudo é verdadeiro, afirmamos a
verdade da afirmação oposta e, conseqüentemente, a falsidade da
nossa própria tese (pois a afirmação oposta não admite que ela
possa ser verdadeira). E, se dizemos que tudo é falso, também esta
afirmação se torna falsa". (Albert Camus, 1942, p. 17).

"É preciso considerar como uma referência permanente, neste ensaio, a constante separação entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos, o consentimento prático e a ignorância simulada que nos levam a viver com idéias que, se verdadeiramente experimentássemos,deveriam perturbar toda a nossa vida". (Albert Camus, 1942, p. 18).

"Existe um fato evidente que parece inteiramente moral: é que um
homem é sempre a presa de suas verdades. Uma vez reconhecidas, ele não saberia se desligar delas".  (Albert Camus, 1942, p. 27).

"Eu tomo a liberdade de chamar agora de suicídio filosófico a atitude existencial. Mas isso não implica um julgamento. É uma maneira cômoda de designar o movimento pelo qual um pensamento se nega a si mesmo e tende a se ultrapassar naquilo que constitui sua negação. Para os existenciais, a negação é seu Deus. Exatamente: esse deus só se sustenta com a negação da razão humana.  Mas,
como os suicidas, os deuses mudam junto com os homens. Há diversas maneiras de saltar, mas o essencial é saltar. (Albert Camus, 1942, p. 33).

"O raciocínio que este ensaio vem pretendendo -- é preciso dizê-lo uma vez mais -- deixa completamente de lado a atitude espiritual mais propalada em nosso século esclarecido: a que se apóia sobre o princípio de que tudo é razão e que tem em vista dar uma explicação do mundo". (Albert Camus, 1942, p. 34).

"Pensar é reaprender a ver, dirigir a consciência, fazer de cada imagem um lugar privilegiado. Em outras palavras, a fenomenologia se recusa a explicar o mundo: quer apenas ser uma descrição do vivido". (Albert Camus, 1942, p. 34).

"O mundo para ele [Husserl] não é nem tão racional, nem a tal ponto irracional. Ele é despropositado e apenas isso". (Albert Camus, 1942, p. 38).

"É no final desse caminho difícil que o homem absurdo reconhece suas verdadeiras razões. Comparando sua exigência profunda ao que então lhe é proposto, ele sente, de súbito que vai se desviar". (Albert Camus, 1942, p. 38).

Enfim, "Meu raciocínio pretende ser fiel à evidência que ele despertou. Essa evidência é absurda. É esse divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que ilude, minha nostalgia de unidade, esse universo disperso e a contradição que os encadeia". (Albert Camus, 1942, p. 39).


Jesus nos quer desarmados ou armados?


Muitos religiosos, fazendo um discurso politicamente correto, dirão que Ele nos quer desarmados. Mas não é verdade.

D’US nos quer armados em muitas passagens.

“Mas agora” – disse-lhes ele –, “aquele que tem uma bolsa, tome-a; aquele que tem uma mochila, tome-a igualmente; e aquele que não tiver uma espada, venda sua capa para comprar uma. (Lucas 22, verso 36).

Entretanto, a espada deve ser  usada para a segurança de quem a usa.
Jesus, no entanto, lhe dis¬se: “Embainha tua espada, porque todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão”. (São Mateus 26, 52).

 A palavra espada aparece 406 vezes na Bíblia de Jerusalém.  No contexto em que Lucas manda que se venda uma capa para comprar uma espada, o capítulo 22, Jesus que era um judeu (o catolicismo só passará a existir quase 300 anos mais tarde), se reúne com os discípulos para celebrar o último Shabbat dele.

O Shabbat começa na noite de sexta-feira e vai até a noite de Sábado. Aquele, entrementes, era especial, pois estavam nos dias de Comemoração da Páscoa Judaica (Pêssach). 

É nesse clima de aflição, pois Jesus sabe que corre risco de morte e as rezas do Shabbat que está a porção das Duas Espadas do evangelho de Lucas (22, versos 35, 38).

domingo, 14 de abril de 2019

Conversar é o melhor remédio.

Conversar cura muitos males, desde depressão leve, passando pela nostalgia e solidão e indo até coceira nas costas e piolhos.

Converse muito!

terça-feira, 9 de abril de 2019

Do amor de Nacib e Gabriela : literatura e filosofia




Do amor de Nacib e Gabriela[1]: literatura e filosofia

Daniel R. de C. Pinheiro[2]

Resumo

Nessa noite, eu tentarei responder a algumas perguntas: Se Gabriela amava o Nacib, por que o traiu? Se Nacib deveria lavar a honra dele com o sangue dos traidores, por que não o fez? Por que não matou o imprestável do Tonico Bastos? Talvez porque o afeto de Gabriela por Nacib fosse intenso, mas diferente do afeto de Nacib por Gabriela (Aristóteles, 322 A.E. C; Buber 1979). E a narração desses amores é um mito (Campbell, 1987) e não é uma ficção.
Palavras-chave: Afetos. Éros. Psiquê. Filia. Mito.

Agradecimentos

Boa noite, colegas.
Estou aqui num dia muito especial para mim, ao lado de companheiros que amam o conhecimento e a sabedoria. Com alguns, caminho há anos. Com outros, dou os primeiros passos.
A todos, obrigado por doar um pouco do seu tempo à discussão sobre o amor de Nacib por Gabriela e de Gabriela por Nacib, mesmo que algum de vocês tenha que sair cedo. Obrigado pelo carinho que cada um aqui dedica aos Encontros Literários Moreira Campos.
Obrigado aos colegas. Obrigado professores: José Leite de Oliveira Júnior; Geraldo Augusto Fernandes; José Carlos Siqueira de Souza; Marcelo Magalhães Leitão; José Batista de Lima; Antônio Celiomar Pinto de Lima; Aíla Maria Leite Sampaio; Claudicélio Rodrigues da Silva.
Peço desculpas por meus conhecimentos limitados de Literatura e Filosofia. E pela petulância de tentar investir a Hermenêutica de Joseph Campbell, Emerich Coreth e Manfredo Oliveira numa obra tão desafiadora quanto Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Objetivo

A minha reflexão será uma tentativa de responder a duas perguntas:
                    i.            Se a Sra. Gabriela Saad amava o marido, por que o traiu antes e depois do casamento?
                  ii.            Se Nacib A. Saad, segundo o costume do sul da Bahia romanceada, deveria lavar a honra dele com o sangue dos traidores, por que não matou Gabriela? Pior, por que não matou pelo menos o imprestável do Tonico Bastos?

Para resolver esses mistérios das formas do amor, tentarei mostrar que o afeto de Gabriela por Nacib é intenso, mas é diferente do afeto que Nacib dedica a Bié. Infelizmente esses afetos diferentes são chamados de amor.

a)      Para atingir esse alvo, tentarei mostrar que Gabriela é um romance mitológico.
b)      Em seguida tematizarei o amor, uma palavra cujo sentido em língua portuguesa musical e polissêmico.
c)      Nesse cenário mitológico em que o amor dramatiza seu papel singular, tentarei mostrar que Nacib não matou Gabriela e nem Tonico porque ele entendeu um algo muito complexo: a natureza do amor de Bié.
d)     Finamente, tentarei realçar as luzes que iluminam os mistérios do amor entre homens e mulheres a partir do mito de Gabriela e Nacib.

DO MITO NACIB E GABRIELA

O Romance Grabriela é uma narrativa mitológica que foi apropriada por Amado. Ela tem um propósito: interpretar o Nacib que não matou Gabriela e nem morreu por esse amor.

A tarefa do mito é resolver mistérios. Mistério não é a mesma coisa que problema científico. O mistério é uma pergunta que as ciências não conseguem responder com os próprios meios. Por exemplo: de onde viemos? Para onde iremos depois da morte? Existe a alma? É possível ser feliz?

 Mitos são narrativas que esclarecem mistérios (veja CAMPBELL, 1990). O mito de Narciso, diz a ti que o narcísico não está a fim de você. Apaixone-se por ele e passará o resto de tua vida chorando numa caverna. O mito do Chapeuzinho Vermelho serve para as mães ensinarem as filhas que o lobo é mau e vai comê-las.
Às vezes, pedaços do mito têm explicação científica. Por exemplo, a matéria informe e vazia (תהו ןבהו) que, segundo a narrativa criacionista, deu origem a tudo mais que se conheceu existe, é o bóson de Higgs. Essa partícula subatômica é vazia e informe que está na origem do Universo. (GROSSMAN, 2014).

A tarefa das ciências, diferente do mito, é dar alguma resposta às perguntas com sentido. Pergunta com sentido é aquela que as ciências conseguem responder com os próprios meios. Por exemplo: quando Jorge Amado conheceu Zélia Gattai Amado? Quando foi o primeiro beijo? Por que demoraram a se casar? As ciências resolvem problemas. Problemas e mistérios não são as mesmas coisas.

Creio que a literatura tem essa capacidade de tratar de questões propriamente humanas. Talvez as ciências empíricas não consigam fazê-lo, com seus próprios métodos e sistemas.

— Se Gabriela for um mito, qual o mistério?

O mistério do amor. Parece que duas formas de amor se encontram no romance[3]. Há o amor de Nacib A. Saad por Bié. Um amor que não se deixa abater pelo preconceito. O patrão casa com a empregada e danem-se. O homem bom casa-se com uma mulher pobre, sem nome, registro civil ou data de nascimento.

E o amor de Gabriela pelo amante, Seu Nacib, homem bom.
O amor do patrão solitário e bom pela empregada não poderia dar certo. Será? Lembro-me de pelo menos um caso em que deu certo.

SOBRE FILIA E OUTRAS FIGURAS DO AMOR

Mistérios precisam ser investigados. Não tendo de onde partir, fui ao dicionário. Vi em Houaiss (2001) que a palavra amor tem 14 significados diferentes. Descartei nove[4]. Interessei-me por cinco:

1.      forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais;
2.      atração baseada no desejo sexual.
3.      afeição baseada em admiração, benevolência ou interesses comuns; forte amizade
4.      demonstração de zelo, de dedicação.
5.      angiospermas do Desmodium discolor ou carrapicho (regionalismo). Aquela coisinha chata, grudenta e capaz de ferir também é chamada de amor.

— Qual dessas acepções se aplicava ao afeto de Gabriela por Nacib?

Gabriela chamava o amado de Seu Nacib, desde o início do romance. E muitas vezes era Seu Nacib, homem bom... Essa pista sugere que o afeto dela por Seu Nacib não era uma “atração baseada no desejo sexual”. Também não era grudento como um carrapicho. Sobraram-me, pois, três significados. Onze estavam descartados.

Gabriela não compartilhava muitos interesses com Nacib, vis-à-vis a participação dela no terno das pastoras (tratarei disso adiante). Muito menos tinha por Nacib forte amizade. Ela nem o chamava de tu!

Então, sobraram apenas dois significados para a palavra amor, se for ela que qualifica o afeto de Gabriela por Nacib: afeição nascida de consanguinidade ou relações sociais; afeto baseado em zelo e dedicação. Descartada a consanguinidade, sobra-me o zelo e a dedicação.

Zelo e dedicação são atributos que uma boa cozinheira teria pelo patrão e o bar.
Antônio Houaiss não me ajudou muito. Mesmo assim, agradeço.

As histórias de amor Éros e Psiquê, Elcana e Hanna e mesmo do amor de Nacib e Gabriela são marcadas pela tensão entre sofrimento e prazer; alegria e tristeza; desertos e oásis; experiências mundanas e apelos divinos; encontros e desencontros; traições e fidelidade. Numa palavra, são histórias barrocas.

Psiquê, por exemplo, trai a promessa feita a Éros. Não resiste à curiosidade e lhe vê o rosto. O amor de Éros por Psiquê não bastava. Ela precisava saber se Éros é bonito.

Hanna desejava tão ardentemente ter um filho que chora em oração. Nada a consola, nem o amor de Elcana. Ele não consegue entender isso. Elcana poderia pedir divórcio. Era a lei. Ele nem cogita nisso, pois amava aquela mulher. Num certo momento, ele pergunta: Hanna, por que choras? E por que não comes? E por que está mal o teu coração?  Não sou melhor que dez filhos?

O amor de Elcana não basta. Hanna queria pelo menos um filho. O amor de Éros não basta. Psiquê precisava satisfazer a curiosidade dela e das irmãs. E o amor de Nacib não é suficiente. “Gabriela gostava de dormir nos braços de um homem. Não de qualquer. De moço bonito, como Clemente, como Tonico, como seu Nilo, como Bebinho, ah! Como seu Nacib” (AMADO, 2013, p. 283).

O amor nunca basta por si mesmo?

Não sei. Sei que o amor é uma cruz, pelo menos para esse baiano nascido em Itabuna e crescido em Ilhéus. A dedicatória desse romance mostra isso.

 “Para Zélia seus ciúmes
seus cantares sua penas
o luar de Gabriela
E a cruz do meu amor” (AMADO, 2013, p. 5).

Note que Jorge oferece a Zélia a “cruz do amor” dele. O amor é cruz. Cruz é sofrimento. É prova de amor. Cruz marca a terra de quem dela toma posse: Zélia, fique com a cruz do meu amor. Toma posse dele.
A cruz inicia um novo tempo. Nesse caso, abre o portal de romance e prazer. Ela ficaria despercebida se Gabriela fosse um romance de ficção. Entrementes, é um mito sobre duas formas diferentes de amor se encontrando.
O primeiro amor precisa atravessar o sertão semiárido para encontrar a amada:

“O cheiro de cravo,
a cor de canela,
eu vim de longe
vim ver Gabriela” (AMADO, 2013, p. 7).

“Eu vim de longe”. Muitos dos que estão aqui vieram de longe. Nossos antepassados atravessaram o mar salgado de Fernando Pessoa, expulsos da Península Ibérica pelo Édito dos Reis Católicos porque eram judeus. Refiro-me às famílias Silva, Pereira, Pinheiro, Ferreyra povo instruído e trabalhador que veio construir o Brasil.

Outros atravessaram desertos fugindo das guerras, dos preconceitos, da fome e se instalaram no semiárido brasileiro.  Nesse caso, não havia uma lei que os obrigasse atravessar montanhas e desertos. Havia uma ordem e uma motivação.
“Eu vim de longe, vim ver Gabriela” a bela cozinheira do bar de Nacib com uma rosa no cabelo.

Quem veio de longe?

Nacib A. Saad, pois só duas coisas fazem um homem comum sem nenhum talento heroico-trágico atravessar o deserto: comida ou amor. Nacib atravessou um deserto para encontrar Gabriela, seu amor, sua cruz.

Então, não vale a pena amar?

Vale a pena. O amor é nossa única possibilidade de sermos felizes. Mas o amor é como o caju que cresce nos terrenos arenosos do litoral norte do Brasil: lindo, colorido, saboroso, nutritivo. Contudo, deixa sempre algum travo na boca de quem já o experimentou.

— Se Nacib amava Bié de todo coração, então, ele deveria matar Gabriela?  Era a lei.

Sim. Ele deveria tê-la matado. E a Tonico Bastos. Ele planejou essas mortes cuidadosamente durante toda a terrível noite anterior àquele encontro. No dia seguinte, Nacib saiu do Vesúvio com o propósito de apanhar Bié e Tonico junto. E se estivessem juntos, morreriam.

Tonico, antes de encontrar Gabriela, passou no Vesúvio. Tomou um trago e se certificou de que o turco corno estaria trabalhando enquanto ele rolava na cama com Gabriela. Depois que ele saiu, Nacib esperou 15 minutos. Pôs o revolver na cintura e foi fazer o que deveria fazer. Enfim, Nacib descobriu que Gabriela sempre o traiu. Mas ele não matou Tonico e Gabriela.
Tonico foge só de cuecas. Gabriela fica e apanha muito, até que Fulgêncio chega, acode os dois e leva Nacib para a casa dele.

— Quem era João Fulgência na narrativa mitológica?

No romance, é o livreiro. No mito, o mestre, a fulgência ou brilho. Numa entrevista a Bill Moyers , o professor Campbell ensina  que o Mestre é o homem sábio que responde as perguntas mais complexas. Lembra-te do Mestre Jedi de Guerra nas Estrelas? Ele era um mestre. Lembra-te de Mr Henry de O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wide? Também era um mestre.

 Nacib não matou Tonico e Gabriela, como ele imaginava. Não lavou com sangue a própria honra. Estava confuso, desnorteado e sofrido. O que ele faz? Pergunta ao mestre: Fulgêncio, o que eu faço agora?

Fulgêncio propõe uma solução simples: anular o casamento, pois a certidão de nascimento de Gabriela era falsificação feita por Tonico Bastos, o tabelião do cartório de registro civil.

Tonico não teve escolha. Informou ao juiz a falsidade da certidão de nascimento. O casamento de Nacib foi anulado. Agora Gabriela era somente Gabriela, sem nome, sem família, sem data de nascimento. Nacib era um homem solteiro.

— Será que Nacib era covarde, medroso, por isso não matou aqueles dois?

Não. Nacib era forte, corajoso e generoso. Quando Nacib estava começando a reforma da cozinha do Vesúvio, ele deu dois sinais bem claros de sua coragem e generosidade. Na tarde que precede a desgraça aconteceu o seguinte:

“[...] pegou Bico-Fino a tirar dinheiro do caixa. Não foi surpresa, Nacib vinha desconfiado desde algum tempo.
Perdeu a cabeça, deu uns sopapos no rapazola.
‒ Ladrão! Gatuno!
Curioso, não pensava em despedi-lo”. (AMADO, 2013, p. 275).
Bico-Fino foge de Nacib e xinga-o. Vinga-se.
— “Turco cabrão, filho da puta! Por que não vai tomar conta da tua mulher? Não sente os chifres doer”?

Chico Moleza, que presenciou a briga, para impedir que Bico-Fino apanhasse mais, conta a Nacib as histórias de traição de Gabriela. Portanto, Nacib era forte, corajoso e generoso. Ele nem pensou em demitir Bico-Fino.

— Nacib não era capaz de matar ninguém. Por isso não matou Gabriela e Tonico.

Pode ser. Ele falou isso. Mas ele havia aprendido com João Fulgêncio que algumas flores não servem para os jarros. Isso talvez não seja a causa da decisão de Nacib, mas corrobora.

Ele amava muito Gabriela. Tinha por ela um amor éros. Ela dava sentido à vida dele. Éros tem dessas coisas. Por éros, ele aceitou casar-se com a empregada. Por éros, ele a deixa.

Acredito que o amor éros é algo que pertence ao amante e não a amada. Ele sai do amante para a amada. Portanto, terminado o casamento, Nacib pode guardar esse amor num canto ou dirigi-lo a outra mulher. O amor por Gabriela é uma graça de Nacib.

Gabriela não amava Seu Nacib?

Amava. Mas é outro tipo de amor. Gabriela amava dormir com homens bonitos, especialmente Seu Nacib. Nacib ama dormir com Bié. Essa é a particularidade.

Gabriela amava o Vesúvio, a casa dela. Não amava o casamento. O afeto dela não poderia ser chamado de Eu-Tu (BUBER, 2003. Vale a pena ouvir o que pensava Adnayra Medeiros).

O amor de Nacib por Bié é éros: intenso, encarrapichado, generoso. Um amor assim parece incapaz de se transverter em ódio e morte. Como ele poderia matar alguém que ele amava.

Faltava entre ele e ela o amor Eu-Tu descrito por Martin Buber (2003).

— Gabriela amava o casamento?

Acho que não. Os planos de Gabriela para o réveillon de 1925 a denunciam. A pastora Gabriela era mais forte que a Sra. Saad. Nacib tenta convencê-la de que uma mulher casada não poderia ser a porta-estandarte do terno dos pastores e sair por aí se rebolando. “O que vai dizer minha irmã, a besta do meu cunhado?” (AMADO, 2013, p. 266).

Uma mulher distinta que ama seu casamento não participaria numa folia de reis na condição de porta-estandarte. Toda Ilhéus ia falar. “Impossível, Gabriela, impossível pensar em tal coisa [diz Nacib]. Bié precisa se convencer de que não é mais uma pobre empregada, sem família, sem nome, sem data de nascimento, sem situação social. Como imaginar a sra. Saad na frente do terno [...]. Bié, que ideia mais doida...” (AMADO, 2013, p. 267).

Naquele final de ano, ela riu para Nacib. Ele pediu. Ela riu. Mas chorava por dentro. Nada a animava nem mesmo a écharpe cara, bordada de dourado que Nacib trouxe quando chegou em casa. “Naquela mesma noite sairia o terno com suas lanternas, suas canções e seu estandarte. Gabriela [infelizmente] estaria de mantilha rendada, vestida de seda, com apertados sapatos. No baile [de réveillon], sentada, de olhos baixos, calada, sem saber como se comportar” (AMADO, 2013, p 267). Gabriela acabrunhou-se.

Ela sabia como levar o estandarte, como se rebolar na frente de vinte e duas pastoras, vestindo de cetim azul e vermelho, tendo na cabeça uma coroa de papel doirado. Agora, quem levaria o estandarte?

Ela só se alegrou quando Nacib disse que não iria ao Vesúvio. Iria com ela ao parque chinês que chegou a Ilhéus. “Aquilo sim valia a pena. Andou em tudo com seu Nacib. Na roda-gigante foi duas vezes. O chicote era gostoso demais, dava um frio embaixo do umbigo” (AMADO, 2013, p 267).

— Que mulher de Jorge Amado ama o casamento?

Dona Flor. Ela nunca quis trair Vadinho. Ela não queria trair nem a memória de Vadinho. Por bastante tempo, umas 100 páginas, ela discute com as comadres essas coisas. Ela estava certa de que nunca mais deveria pensar em fuxico.

A solução para o conflito entre o amor pelo casamento e a vontade de ter uma vida mais comum, sem os desatinos do amor porneia de Vadinho, foi casar novamente. Havia períodos que ela amava o vadio. Noutros períodos, ela preferia o trabalhador.

Que afeto Gabriela tem no coração? Que amor é esse?

O afeto de Gabriela por Nacib era “filia”. Filia é o afeto de novos amantes; de amigos para toda a vida; de companheiros de viagem ou de companheiros de arma; pessoas da mesma tribo[5].

Na inauguração do presépio das irmãs Dos Reis, há evidências de que Gabriela não fazia parte da sociedade de Ilhéus, pois não era daquele mundo vivido que ela fazia parte.

Na inauguração do presépio, havia muita gente de Ilhéus, Itabuna, Itabira, inclusive o cunhado e a irmã de Nacib, mulher orgulhosa, casada com um agrônomo, desdenhosa, despeitada e nojenta. Ela não gostou de Gabriela quando “examinava acintosa a cunhada modesta, sentada sem jeito numa cadeira. 

Gabriela sorriu-lhe timidamente: a Saad de Castro, orgulhosa, virou-lhe as costas. Ficou triste Gabriela”. (AMADO, 2013, p. 265).

A tristeza de Gabriela não era pelo desprezo da cunhada. O desprezo foi vingado por  Nacib, dona Ângela, dona Vera e o velho Ramiro Bastos.

Ramiro não havia visto Joaquim com a mão estendida para cumprimentá-lo. “Mas ele enxergou Gabriela, largou todo mundo, aproximou-se, apertou-lhe a mão, muito amável”:

“Como vai, dona Gabriela? Faz tempo que não a vejo. Por que não aparece? Quero que vá almoçar um dia lá em casa, levando Nacib”. (AMADO, 2013, p. 266).

Gabriela estava triste por causa da folia de Reis. Nacib percebeu. Saiu da casa das irmãs Dos Reis de braços dados com Bié. Passando bem perto da irmã e do cunhado, Nacib disse alto para eles ouvirem:

“Bié, tu está mais bonita que todas, minha mulherzinha”. (AMADO, 2013, p. 266).

Nacib deixou a casa das irmãs Dos Reis porque nada animava Bié, nem mesmo a écharpe cara bordada de dourado que Nacib trouxe. Não naquela noite. “Naquela mesma noite sairia o terno com suas lanternas, suas canções e seu estandarte” (AMADO, 2013, p 267).

Considerações finais ou as luzes sobre os mistérios desses amores

Nacib não sabia o que fazer depois que sabe da traição. Ele amava Bié. O amor dele era éros. Um amor intenso que desconhece vergonhas e convenções sociais. Mas ele ouviu, decorou e aprendeu o que o mestre dele, João Fulgêncio, o livreiro, ensinou: há flores que não foram feitas para os jarros.

O amor de Gabriela por seu Nacib não estava no Antônio Houaiss. Estava descrito na Ética a Nicômaco. Era filia, o amor dos novos amantes; dos amigos para sempre. Por isso ela fica mais triste do que Nacib, quando os dois se separam. Seu Nacib podia ter outra mulher. Ela sabia que Tonico dormia com outras.

Descobri com João Fulgêncio que o muçambê é uma flor linda que nasce após as chuvas, desde o Ceará até o norte de Minas. Um dia colhi uma. Ela nasceu à beira dum riacho canalizado em Crateús junto dum filete d’água servida.

Minha felicidade durou pouco. Ela logo murchou. Não durou mais que alguns poucos minutos. Ninguém a amou. Somente eu. Ela era a tal flor que não pode ser tirada do lugar onde nasceu, mesmo que fosse um filete de água e esgoto. Pode-se amar a flor de muçambê. Mas deixa-a onde a encontrou. Ouça seu mestre.

Parece que éros, o amor de Nacib por Gabriela é diferente “xodó, rabicho,paixão”. Ele tem essa capacidade de se refazer depois de tudo aquela tensão.
“Também a existência de Nacib fora movimentada e plena nesses meses: casara e descasara, conhecera a prosperidade e temera a ruína, teve o peito cheio de ânsia e alegria, depois vazio de vida, só o desespero e a dor. Fora feliz demais, infeliz demais, agora novamente tudo era tranquilo e doce. Retomara o bar seu ritmo antigo, dos primeiros tempos de Gabriela: demoravam-se os fregueses na hora do aperitivo, tomando mais um cálice, alguns subiam para almoçar no restaurante. Prosperava o Vesúvio, Gabriela descia ao meio-dia da cozinha no andar de cima e passava entre as mesas a sorrir, a rosa atrás da orelha. Diziam-lhe graçolas, lançavam-lhe olhares de cobiça, tocavam-lhe a mão, um mais ousado dava-lhe um tapa nas ancas, o Doutor a chamava minha menina. Louvavam a sabedoria de Nacib, a maneira como soubera sair, com honra e proveito, do labirinto de complicações em que se envolvera”. [...] Louvavam a sabedoria de Nacib, a maneira como soubera sair, com honra e proveito, do labirinto de complicações em que se envolvera. (AMADO, 2013, p. 273?).

A sabedoria de Nacib tenha três pilares:
a)      o amor Éros por Gabriela;
b)      o coração generoso de quem nem pensou em demitir Bico-Fino, que o furtava;
c)      e a capacidade de aprender com o mestre  dele: João Fulgêncio.

Obrigado.

E ouça o seu mestre. Ele lhe quer ver feliz.

Referências:

AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2011.
BUBER, Martim. Eu e Tu. São Paulo: Cortez, 1979.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990.
CORETH, Ermerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1973.
GROSSMAN, Lisa. Higgs boson glimpsed at work for first time. Physics & Math [on-line].
HUGHES, Gerard J. Aristotle on Ethics. Cambridge Journals Online. (Routledge, 2001)
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Conhecimento e historicidade. Revista Síntese, n. 40. P.33-58, 1987. Belo Horizonte.


[1] Para Helane, com amor.
[2] Daniel R. de C. Pinheiro é arquiteto, urbanista; orientador de mestrado e doutorado; pai de seis filhos.
[3] Há pelo menos quatro formas de sentimento em Gabriela, Cravo e Canela: “Xodó, rabicho, paixão, amor —dependia da cultura e boa vontade do comentarista a classificação do sentimento...” (AMADO, 2013, p. 299).
[4] 1. Atração sexual natural entre espécies animais. 2. Relação amorosa; caso, namoro. 3. A pessoa ou a coisa amada. 4. Devoção, adoração. 5. Devoção de uma pessoa ou um grupo de pessoas por um ideal concreto ou abstrato. 6. O objeto de tal interesse ou veneração. 7. Divindade. Cupido ou Eros para os gregos. 8. Cada uma das divindades infantis subordinadas a Vênus e a Cupido. 9. Angiospermas. m.q. bardana-menor (Arctium minus)
[5] Filia (em grego: "φιλíα"; em português: "philia") retirado do tratado de Ética a Nicômaco de Aristóteles, às vezes é "amizade", e às vezes "amor". Filia, em Aristóteles, é um termo mais amplo que amizade. Gerard Hughes escreve que nos livros VIII e IX, Aristóteles dá exemplos de philia: "os amantes novos (1156b2), os amigos para toda a vida (1156b12), as cidades com os outros (1157a26), os contatos políticos ou de negócio (1158a28), os pais e as crianças (1158b20), o companheiro de viagem e os companheiros de armas (1159b28), os membros da mesma sociedade religiosa, ou mesmo no jantar (1160a19), ou mesmo na tribo (1161b14), de um sapateiro e da pessoa que compra dele (1163b35). "

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Depressão profunda ou preguiça patológica. O que é pior?



Juraci não vê sentido na própria vida. Costuma ter baixa autoestima, desinteresse pelos outros e pelas coisas. Estava quase sempre voltado para ele mesmo. 

Era capaz de dormir até a hora do almoço, almoçar e voltar para os próprios pensamentos e interesses.

Juraci às vezes melhorava, mas logo voltava para aquele isolamento feito de tédio e desamparo.

Juraci era deprimido.

Adir não gostava de nada que desse trabalho: casa, serviços, emprego. Não gostava de ninguém que desse trabalho: filho, marido ou parentes. 

Era hedonista. Muito focada no próprio prazer, fosse do estômago ou da fantasia. Vaidosa. Alisava e pintava os cabelos, cuidava de si, só andava bem vestida. 

Era capaz de dormir até a hora do almoço e depois se levantar, deixar todos os que dependiam dela abandonados e sair para almoçar com as amigas.

Adir tinha preguiça patológica.
Juraci ainda vive. Adir morreu.

Juraci foi diagnosticado.
Adir não foi.

Anotações sobre a Introdução de “A Loucura do Trabalho” (Dejours, 2014, p. 11-26): ficha crítica.

§1 Há uma passagem na Apresentação feita por Leda L. Ferreira de A Loucura do Trabalho que sintetiza bem ao gosto da Psicodinâmica de...