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domingo, 14 de abril de 2019
terça-feira, 9 de abril de 2019
Do amor de Nacib e Gabriela : literatura e filosofia
Daniel R. de C.
Pinheiro[2]
Resumo
Nessa noite, eu tentarei
responder a algumas perguntas: Se Gabriela amava o Nacib, por que o traiu? Se
Nacib deveria lavar a honra dele com o sangue dos traidores, por que não o fez?
Por que não matou o imprestável do Tonico Bastos? Talvez porque o afeto de Gabriela
por Nacib fosse intenso, mas diferente do afeto de Nacib por Gabriela
(Aristóteles, 322 A.E. C; Buber 1979). E a narração desses amores é um mito (Campbell,
1987) e não é uma ficção.
Palavras-chave: Afetos. Éros. Psiquê. Filia. Mito.
Agradecimentos
Boa noite, colegas.
Estou aqui num dia muito especial para mim,
ao lado de companheiros que amam o conhecimento e a sabedoria. Com alguns,
caminho há anos. Com outros, dou os primeiros passos.
A todos, obrigado por doar um pouco do
seu tempo à discussão sobre o amor de Nacib por
Gabriela e de Gabriela por Nacib, mesmo que algum de vocês tenha que sair cedo.
Obrigado pelo carinho que cada um aqui dedica aos Encontros Literários
Moreira Campos.
Obrigado aos colegas. Obrigado professores: José Leite de Oliveira Júnior; Geraldo Augusto Fernandes; José
Carlos Siqueira de Souza; Marcelo Magalhães Leitão; José Batista de Lima;
Antônio Celiomar Pinto de Lima; Aíla Maria Leite Sampaio; Claudicélio Rodrigues
da Silva.
Peço desculpas por meus conhecimentos
limitados de Literatura e Filosofia. E pela
petulância de tentar investir a Hermenêutica de Joseph Campbell, Emerich
Coreth e Manfredo Oliveira numa obra tão desafiadora quanto Gabriela, Cravo
e Canela, de Jorge Amado.
Objetivo
A minha reflexão será uma tentativa de
responder a duas perguntas:
i.
Se a Sra.
Gabriela Saad amava o marido, por que o traiu antes e depois do casamento?
ii.
Se Nacib
A. Saad, segundo o costume do sul da Bahia romanceada, deveria lavar a honra
dele com o sangue dos traidores, por que não matou Gabriela? Pior, por que não
matou pelo menos o imprestável do Tonico Bastos?
Para resolver esses mistérios das formas do
amor, tentarei mostrar que o afeto de Gabriela por Nacib é intenso, mas é diferente
do afeto que Nacib dedica a Bié. Infelizmente esses afetos diferentes são chamados
de amor.
a)
Para
atingir esse alvo, tentarei mostrar que Gabriela é um romance mitológico.
b)
Em seguida
tematizarei o amor, uma palavra cujo sentido em língua portuguesa musical e
polissêmico.
c)
Nesse
cenário mitológico em que o amor dramatiza seu papel singular, tentarei mostrar
que Nacib não matou Gabriela e nem Tonico porque ele entendeu um algo muito
complexo: a natureza do amor de Bié.
d)
Finamente,
tentarei realçar as luzes que iluminam os mistérios do amor entre homens e
mulheres a partir do mito de Gabriela e Nacib.
DO MITO NACIB E GABRIELA
O Romance Grabriela é uma narrativa
mitológica que foi apropriada por Amado. Ela tem um
propósito: interpretar o Nacib que não matou Gabriela e nem morreu por esse
amor.
A tarefa do mito é resolver mistérios. Mistério não é a mesma coisa que problema científico. O mistério é
uma pergunta que as ciências não conseguem responder com os próprios meios. Por
exemplo: de onde viemos? Para onde iremos depois da morte? Existe a alma? É
possível ser feliz?
Mitos
são narrativas que esclarecem mistérios (veja CAMPBELL, 1990). O mito de
Narciso, diz a ti que o narcísico não está a fim de você. Apaixone-se por ele e
passará o resto de tua vida chorando numa caverna. O mito do Chapeuzinho
Vermelho serve para as mães ensinarem as filhas que o lobo é mau e vai comê-las.
Às vezes, pedaços do mito têm explicação
científica. Por exemplo, a matéria informe e vazia (תהו ןבהו) que,
segundo a narrativa criacionista, deu origem a tudo mais que se conheceu existe,
é o bóson de Higgs. Essa partícula subatômica é vazia e informe que está na
origem do Universo. (GROSSMAN, 2014).
A tarefa das ciências, diferente do
mito, é dar alguma resposta às perguntas com sentido. Pergunta com sentido é aquela que as ciências conseguem responder
com os próprios meios. Por exemplo: quando Jorge Amado conheceu Zélia Gattai
Amado? Quando foi o primeiro beijo? Por que demoraram a se casar? As ciências
resolvem problemas. Problemas e mistérios não são as mesmas coisas.
Creio que a literatura tem essa
capacidade de tratar de questões propriamente humanas. Talvez as ciências empíricas não consigam fazê-lo, com seus
próprios métodos e sistemas.
— Se Gabriela for um mito, qual o mistério?
O mistério do amor. Parece que duas
formas de amor se encontram no romance[3].
Há o amor de Nacib A. Saad por Bié. Um amor que não
se deixa abater pelo preconceito. O patrão casa com a empregada e danem-se. O
homem bom casa-se com uma mulher pobre, sem nome, registro civil ou data de
nascimento.
E o amor de Gabriela pelo amante, Seu Nacib,
homem bom.
O amor do patrão solitário e bom pela
empregada não poderia dar certo. Será? Lembro-me de
pelo menos um caso em que deu certo.
SOBRE FILIA E OUTRAS FIGURAS DO AMOR
Mistérios precisam ser investigados. Não tendo de onde partir, fui ao dicionário. Vi em Houaiss (2001)
que a palavra amor tem 14 significados diferentes. Descartei nove[4].
Interessei-me por cinco:
1.
forte
afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações
sociais;
2.
atração
baseada no desejo sexual.
3.
afeição
baseada em admiração, benevolência ou interesses comuns; forte amizade
4.
demonstração
de zelo, de dedicação.
5.
angiospermas
do Desmodium discolor ou carrapicho (regionalismo). Aquela coisinha
chata, grudenta e capaz de ferir também é chamada de amor.
— Qual dessas acepções se aplicava ao afeto de Gabriela
por Nacib?
Gabriela chamava o amado de Seu Nacib,
desde o início do romance. E muitas vezes era Seu Nacib,
homem bom... Essa pista sugere que o afeto dela por Seu Nacib não era uma
“atração baseada no desejo sexual”. Também não era grudento como um carrapicho.
Sobraram-me, pois, três significados. Onze estavam descartados.
Gabriela não compartilhava muitos
interesses com Nacib, vis-à-vis a participação dela no terno das pastoras (tratarei disso adiante). Muito menos tinha por Nacib forte
amizade. Ela nem o chamava de tu!
Então, sobraram apenas dois significados
para a palavra amor, se for ela que qualifica o
afeto de Gabriela por Nacib: afeição nascida de consanguinidade ou relações
sociais; afeto baseado em zelo e dedicação. Descartada a consanguinidade, sobra-me
o zelo e a dedicação.
Zelo e dedicação
são atributos que uma boa cozinheira teria pelo patrão e o bar.
Antônio Houaiss não me ajudou muito. Mesmo
assim, agradeço.
As histórias de amor Éros e Psiquê, Elcana
e Hanna e mesmo do amor de Nacib e Gabriela são marcadas
pela tensão entre sofrimento e prazer; alegria e tristeza; desertos e oásis;
experiências mundanas e apelos divinos; encontros e desencontros; traições e
fidelidade. Numa palavra, são histórias barrocas.
Psiquê, por exemplo, trai a promessa
feita a Éros. Não resiste à curiosidade e lhe vê o
rosto. O amor de Éros por Psiquê não bastava. Ela precisava saber se Éros é
bonito.
Hanna desejava tão ardentemente ter um
filho que chora em oração. Nada a consola, nem o
amor de Elcana. Ele não consegue entender isso. Elcana poderia pedir divórcio.
Era a lei. Ele nem cogita nisso, pois amava aquela mulher. Num certo momento,
ele pergunta: Hanna, por que choras? E por que não comes? E por que está mal o
teu coração? Não sou melhor que dez
filhos?
O amor de Elcana não basta. Hanna queria
pelo menos um filho. O amor de Éros não basta. Psiquê precisava satisfazer a
curiosidade dela e das irmãs. E o amor de Nacib não é suficiente. “Gabriela
gostava de dormir nos braços de um homem. Não de qualquer. De moço bonito, como
Clemente, como Tonico, como seu Nilo, como Bebinho, ah! Como seu Nacib” (AMADO,
2013, p. 283).
— O amor nunca basta por si mesmo?
Não
sei. Sei que o amor é uma cruz, pelo menos para esse baiano nascido em Itabuna e crescido em Ilhéus.
A dedicatória desse romance mostra isso.
“Para Zélia seus ciúmes
seus cantares sua penas
o luar de Gabriela
E a cruz do meu amor” (AMADO,
2013, p. 5).
Note que Jorge oferece a Zélia a “cruz
do amor” dele. O amor é cruz. Cruz é sofrimento. É
prova de amor. Cruz marca a terra de quem dela toma posse: Zélia, fique com a
cruz do meu amor. Toma posse dele.
A cruz inicia um novo tempo. Nesse caso, abre o portal de romance e prazer. Ela ficaria
despercebida se Gabriela fosse um romance de ficção. Entrementes, é um mito sobre
duas formas diferentes de amor se encontrando.
O primeiro amor precisa atravessar o sertão
semiárido para encontrar a amada:
“O cheiro de cravo,
a cor de canela,
eu vim de longe
vim ver Gabriela” (AMADO, 2013, p. 7).
“Eu vim de longe”. Muitos dos que estão aqui
vieram de longe. Nossos antepassados atravessaram o mar salgado de Fernando
Pessoa, expulsos da Península Ibérica pelo Édito dos Reis Católicos porque eram
judeus. Refiro-me às famílias Silva, Pereira, Pinheiro, Ferreyra — povo
instruído e trabalhador que veio construir o Brasil.
Outros atravessaram desertos fugindo das
guerras, dos preconceitos, da fome e se instalaram no semiárido brasileiro. Nesse caso, não havia uma lei que os
obrigasse atravessar montanhas e desertos. Havia uma ordem e uma motivação.
“Eu vim de longe, vim ver Gabriela” a bela
cozinheira do bar de Nacib com uma rosa no cabelo.
— Quem veio
de longe?
Nacib A. Saad, pois só duas coisas fazem um
homem comum sem nenhum talento heroico-trágico atravessar o deserto: comida ou
amor. Nacib atravessou um deserto para encontrar Gabriela, seu amor, sua cruz.
—
Então, não vale a pena amar?
Vale a pena. O amor é nossa única possibilidade de
sermos felizes. Mas o amor é como o caju que cresce
nos terrenos arenosos do litoral norte do Brasil: lindo, colorido, saboroso,
nutritivo. Contudo, deixa sempre algum travo na boca de quem já o experimentou.
— Se Nacib amava Bié de todo coração, então, ele deveria
matar Gabriela? Era a lei.
Sim. Ele deveria tê-la matado. E a Tonico Bastos. Ele planejou essas
mortes cuidadosamente durante toda a terrível noite anterior àquele encontro.
No dia seguinte, Nacib saiu do Vesúvio com o propósito de apanhar Bié e Tonico
junto. E se estivessem juntos, morreriam.
Tonico, antes de
encontrar Gabriela, passou no Vesúvio. Tomou um
trago e se certificou de que o turco corno estaria trabalhando enquanto ele
rolava na cama com Gabriela. Depois que ele saiu, Nacib esperou 15 minutos. Pôs
o revolver na cintura e foi fazer o que deveria fazer. Enfim, Nacib descobriu
que Gabriela sempre o traiu. Mas ele não matou Tonico e Gabriela.
Tonico foge só de cuecas. Gabriela fica e
apanha muito, até que Fulgêncio chega, acode os dois e leva Nacib para a casa
dele.
— Quem era João Fulgência na narrativa mitológica?
No romance, é o livreiro. No mito, o
mestre, a fulgência ou brilho. Numa entrevista a
Bill Moyers , o professor Campbell ensina
que o Mestre é o homem sábio que responde as perguntas mais complexas.
Lembra-te do Mestre Jedi de Guerra nas Estrelas? Ele era um mestre. Lembra-te
de Mr Henry de O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wide? Também era um
mestre.
Nacib
não matou Tonico e Gabriela, como ele imaginava. Não lavou com sangue a própria
honra. Estava confuso, desnorteado e sofrido. O
que ele faz? Pergunta ao mestre: Fulgêncio, o que eu faço agora?
Fulgêncio propõe
uma solução simples: anular o casamento, pois a
certidão de nascimento de Gabriela era falsificação feita por Tonico Bastos, o
tabelião do cartório de registro civil.
Tonico não teve escolha. Informou ao juiz a falsidade da
certidão de nascimento. O casamento de Nacib foi
anulado. Agora Gabriela era somente Gabriela, sem nome, sem família,
sem data de nascimento. Nacib era um homem solteiro.
— Será que Nacib era covarde, medroso, por isso não matou aqueles dois?
Não. Nacib era forte, corajoso e
generoso. Quando Nacib estava começando a reforma
da cozinha do Vesúvio, ele deu dois sinais bem claros de sua coragem e
generosidade. Na tarde que precede a desgraça aconteceu o seguinte:
“[...] pegou Bico-Fino a tirar dinheiro do caixa. Não foi surpresa,
Nacib vinha desconfiado desde algum tempo.
Perdeu a cabeça, deu uns sopapos no rapazola.
‒ Ladrão! Gatuno!
Curioso, não pensava em despedi-lo”.
(AMADO, 2013, p. 275).
Bico-Fino foge de Nacib e xinga-o.
Vinga-se.
— “Turco cabrão, filho da puta! Por que não vai tomar conta da tua
mulher? Não sente os chifres doer”?
Chico Moleza, que presenciou a briga, para
impedir que Bico-Fino apanhasse mais, conta a Nacib as histórias de traição de
Gabriela. Portanto, Nacib era forte, corajoso e generoso. Ele nem pensou em
demitir Bico-Fino.
— Nacib não era capaz de matar ninguém. Por isso não matou Gabriela e Tonico.
Pode ser. Ele falou isso. Mas ele havia
aprendido com João Fulgêncio que algumas flores não servem para os jarros. Isso talvez não seja a causa da decisão de Nacib, mas corrobora.
Ele amava muito
Gabriela. Tinha por ela um amor éros. Ela dava
sentido à vida dele. Éros tem dessas coisas. Por éros, ele aceitou casar-se com
a empregada. Por éros, ele a deixa.
Acredito que o amor
éros é algo que pertence ao amante e não
a amada. Ele sai do amante para a amada. Portanto, terminado o
casamento, Nacib pode guardar esse amor num canto ou dirigi-lo a outra mulher.
O amor por Gabriela é uma graça de Nacib.
— Gabriela não amava Seu Nacib?
Amava.
Mas é outro tipo de amor. Gabriela amava dormir com homens bonitos, especialmente Seu Nacib.
Nacib ama dormir com Bié. Essa é a particularidade.
Gabriela amava o Vesúvio, a casa dela. Não
amava o casamento. O afeto dela não poderia ser chamado de Eu-Tu (BUBER,
2003. Vale a pena ouvir o que pensava Adnayra Medeiros).
O amor de Nacib por Bié é éros: intenso, encarrapichado, generoso. Um amor assim parece incapaz de
se transverter em ódio e morte. Como ele poderia matar alguém que ele amava.
Faltava entre ele e ela o amor Eu-Tu descrito por Martin Buber (2003).
— Gabriela amava o casamento?
Acho que não. Os planos de Gabriela para
o réveillon de 1925 a denunciam. A pastora Gabriela
era mais forte que a Sra. Saad. Nacib tenta convencê-la de que uma mulher
casada não poderia ser a porta-estandarte do terno dos pastores e sair por aí
se rebolando. “O que vai dizer minha irmã, a besta do meu cunhado?” (AMADO,
2013, p. 266).
Uma mulher distinta que ama seu
casamento não participaria numa folia de reis na condição de porta-estandarte. Toda Ilhéus ia falar. “Impossível, Gabriela, impossível pensar em
tal coisa [diz Nacib]. Bié precisa se convencer de que não é mais uma pobre
empregada, sem família, sem nome, sem data de nascimento, sem situação social.
Como imaginar a sra. Saad na frente do terno [...]. Bié, que ideia mais
doida...” (AMADO, 2013, p. 267).
Naquele final de ano, ela riu para Nacib.
Ele pediu. Ela riu. Mas chorava por dentro. Nada a animava nem mesmo a écharpe
cara, bordada de dourado que Nacib trouxe quando chegou em casa. “Naquela mesma
noite sairia o terno com suas lanternas, suas canções e seu estandarte.
Gabriela [infelizmente] estaria de mantilha rendada, vestida de seda, com
apertados sapatos. No baile [de réveillon], sentada, de olhos baixos, calada,
sem saber como se comportar” (AMADO, 2013, p 267). Gabriela acabrunhou-se.
Ela sabia como levar o estandarte, como se
rebolar na frente de vinte e duas pastoras, vestindo de cetim azul e vermelho,
tendo na cabeça uma coroa de papel doirado. Agora, quem levaria o estandarte?
Ela só se alegrou quando Nacib disse que
não iria ao Vesúvio. Iria com ela ao parque chinês que chegou a Ilhéus. “Aquilo
sim valia a pena. Andou em tudo com seu Nacib. Na roda-gigante foi duas vezes.
O chicote era gostoso demais, dava um frio embaixo do umbigo” (AMADO, 2013, p
267).
— Que mulher de Jorge Amado ama o casamento?
Dona Flor. Ela nunca quis trair Vadinho.
Ela não queria trair nem a memória de Vadinho. Por bastante tempo, umas 100
páginas, ela discute com as comadres essas coisas. Ela estava certa de que
nunca mais deveria pensar em fuxico.
A solução para o conflito entre o amor pelo
casamento e a vontade de ter uma vida mais comum, sem os desatinos do amor porneia
de Vadinho, foi casar novamente. Havia períodos que ela amava o vadio. Noutros
períodos, ela preferia o trabalhador.
— Que afeto
Gabriela tem no coração? Que amor é esse?
O afeto de Gabriela por Nacib era “filia”.
Filia é o afeto de novos amantes; de amigos para toda a vida; de companheiros
de viagem ou de companheiros de arma; pessoas da mesma tribo[5].
Na inauguração do presépio das irmãs Dos
Reis, há evidências de que Gabriela não fazia parte da sociedade de Ilhéus,
pois não era daquele mundo vivido que ela fazia parte.
Na inauguração do presépio, havia muita
gente de Ilhéus, Itabuna, Itabira, inclusive o cunhado e a irmã de Nacib, mulher
orgulhosa, casada com um agrônomo, desdenhosa, despeitada e nojenta. Ela não
gostou de Gabriela quando “examinava acintosa a cunhada modesta, sentada sem
jeito numa cadeira.
Gabriela sorriu-lhe timidamente: a Saad de Castro,
orgulhosa, virou-lhe as costas. Ficou triste Gabriela”. (AMADO, 2013, p. 265).
A tristeza de Gabriela não era pelo
desprezo da cunhada. O desprezo foi vingado por
Nacib, dona Ângela, dona Vera e o velho Ramiro Bastos.
Ramiro não havia visto Joaquim com a mão
estendida para cumprimentá-lo. “Mas ele enxergou Gabriela, largou todo mundo,
aproximou-se, apertou-lhe a mão, muito amável”:
— “Como vai, dona Gabriela? Faz tempo que não a vejo. Por que não
aparece? Quero que vá almoçar um dia lá em casa, levando Nacib”. (AMADO, 2013,
p. 266).
Gabriela estava triste por causa da folia
de Reis. Nacib percebeu. Saiu da casa das irmãs Dos Reis de braços dados com
Bié. Passando bem perto da irmã e do cunhado, Nacib disse alto para eles
ouvirem:
— “Bié, tu está mais bonita que todas, minha mulherzinha”. (AMADO, 2013,
p. 266).
Nacib deixou a casa das irmãs Dos Reis
porque nada animava Bié, nem mesmo a écharpe cara bordada de dourado que
Nacib trouxe. Não naquela noite. “Naquela mesma noite sairia o terno com suas
lanternas, suas canções e seu estandarte” (AMADO, 2013, p 267).
Considerações finais ou as luzes sobre os mistérios desses amores
Nacib não sabia o que fazer depois que sabe
da traição. Ele amava Bié. O amor dele era éros. Um amor intenso que desconhece
vergonhas e convenções sociais. Mas ele ouviu, decorou e aprendeu o que o
mestre dele, João Fulgêncio, o livreiro, ensinou: há flores que não foram
feitas para os jarros.
O amor de Gabriela por seu Nacib não estava
no Antônio Houaiss. Estava descrito na Ética a Nicômaco. Era filia, o amor dos
novos amantes; dos amigos para sempre. Por isso ela fica mais triste do que
Nacib, quando os dois se separam. Seu Nacib podia ter outra mulher. Ela sabia
que Tonico dormia com outras.
Descobri com João Fulgêncio que o muçambê é
uma flor linda que nasce após as chuvas, desde o Ceará até o norte de Minas. Um
dia colhi uma. Ela nasceu à beira dum riacho canalizado em Crateús junto dum
filete d’água servida.
Minha felicidade durou pouco. Ela logo
murchou. Não durou mais que alguns poucos minutos. Ninguém a amou. Somente eu.
Ela era a tal flor que não pode ser tirada do lugar onde nasceu, mesmo que
fosse um filete de água e esgoto. Pode-se amar a flor de muçambê. Mas deixa-a
onde a encontrou. Ouça seu mestre.
Parece que éros, o amor de Nacib por
Gabriela é diferente “xodó, rabicho,paixão”. Ele tem essa capacidade de se
refazer depois de tudo aquela tensão.
“Também a
existência de Nacib fora movimentada e plena nesses meses: casara e descasara,
conhecera a prosperidade e temera a ruína, teve o peito cheio de ânsia e
alegria, depois vazio de vida, só o desespero e a dor. Fora feliz demais,
infeliz demais, agora novamente tudo era tranquilo e doce. Retomara o bar seu
ritmo antigo, dos primeiros tempos de Gabriela: demoravam-se os fregueses na
hora do aperitivo, tomando mais um cálice, alguns subiam para almoçar no
restaurante. Prosperava o Vesúvio, Gabriela descia ao meio-dia da cozinha no
andar de cima e passava entre as mesas a sorrir, a rosa atrás da orelha.
Diziam-lhe graçolas, lançavam-lhe olhares de cobiça, tocavam-lhe a mão, um mais
ousado dava-lhe um tapa nas ancas, o Doutor a chamava minha menina. Louvavam a
sabedoria de Nacib, a maneira como soubera sair, com honra e proveito, do
labirinto de complicações em que se envolvera”. [...] Louvavam a sabedoria de
Nacib, a maneira como soubera sair, com honra e proveito, do labirinto de
complicações em que se envolvera. (AMADO, 2013, p. 273?).
A sabedoria de Nacib tenha três pilares:
a)
o amor
Éros por Gabriela;
b)
o coração
generoso de quem nem pensou em demitir Bico-Fino, que o furtava;
c)
e a
capacidade de aprender com o mestre
dele: João Fulgêncio.
Obrigado.
E ouça o seu mestre. Ele lhe quer ver
feliz.
Referências:
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade
do interior. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2011.
BUBER, Martim. Eu e Tu. São Paulo: Cortez, 1979.
CAMPBELL, Joseph. O
poder do mito, com Bill Moyers. São Paulo: Palas
Athena, 1990.
CORETH,
Ermerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: Ed. da
Universidade
de São Paulo, 1973.
GROSSMAN, Lisa. Higgs boson glimpsed
at work for first time. Physics & Math [on-line].
July 2014. Disponível
em: http://www.newscientist.com/article/dn25912-higgs-boson-glimpsed-at-work-for-first-time.html#.VTJ9pyFVikq
Acessado em 18 abr. 2015.
HUGHES, Gerard J. Aristotle on
Ethics. Cambridge Journals Online.
(Routledge, 2001)
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Conhecimento e historicidade. Revista
Síntese, n. 40. P.33-58, 1987. Belo Horizonte.
[1] Para Helane, com amor.
[2] Daniel R. de C. Pinheiro é arquiteto, urbanista; orientador de
mestrado e doutorado; pai de seis filhos.
[3] Há pelo menos quatro formas de sentimento em Gabriela, Cravo e
Canela: “Xodó, rabicho,
paixão, amor —dependia da cultura e boa vontade do comentarista a
classificação do sentimento...” (AMADO, 2013, p. 299).
[4] 1. Atração sexual natural entre espécies animais. 2. Relação
amorosa; caso, namoro. 3. A pessoa ou a coisa amada. 4. Devoção, adoração. 5.
Devoção de uma pessoa ou um grupo de pessoas por um ideal concreto ou abstrato.
6. O objeto de tal interesse ou veneração. 7. Divindade. Cupido ou Eros para os
gregos. 8. Cada uma das divindades infantis subordinadas a Vênus e a Cupido. 9.
Angiospermas. m.q. bardana-menor (Arctium minus)
[5] Filia (em grego: "φιλíα"; em português: "philia")
retirado do tratado de Ética a Nicômaco de Aristóteles, às vezes é
"amizade", e às vezes "amor". Filia, em Aristóteles, é um
termo mais amplo que amizade. Gerard Hughes escreve que nos livros VIII e IX,
Aristóteles dá exemplos de philia: "os amantes novos (1156b2), os amigos
para toda a vida (1156b12), as cidades com os outros (1157a26), os contatos
políticos ou de negócio (1158a28), os pais e as crianças (1158b20), o
companheiro de viagem e os companheiros de armas (1159b28), os membros da mesma
sociedade religiosa, ou mesmo no jantar (1160a19), ou mesmo na tribo (1161b14),
de um sapateiro e da pessoa que compra dele (1163b35). "
sexta-feira, 5 de abril de 2019
Depressão profunda ou preguiça patológica. O que é pior?
Juraci não vê sentido na própria vida.
Costuma ter baixa autoestima, desinteresse pelos outros e pelas coisas. Estava
quase sempre voltado para ele mesmo.
Era capaz de dormir até a hora do almoço,
almoçar e voltar para os próprios pensamentos e interesses.
Juraci às vezes melhorava, mas logo voltava
para aquele isolamento feito de tédio e desamparo.
Juraci era deprimido.
Adir não gostava de nada que desse
trabalho: casa, serviços, emprego. Não gostava de ninguém que desse trabalho:
filho, marido ou parentes.
Era hedonista. Muito focada no próprio prazer, fosse
do estômago ou da fantasia. Vaidosa. Alisava e pintava os cabelos, cuidava de
si, só andava bem vestida.
Era capaz de dormir até a hora do almoço e depois se
levantar, deixar todos os que dependiam dela abandonados e sair para almoçar
com as amigas.
Adir tinha preguiça patológica.
Juraci ainda vive. Adir morreu.
Juraci foi diagnosticado.
Adir não foi.
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Anotações sobre a Introdução de “A Loucura do Trabalho” (Dejours, 2014, p. 11-26): ficha crítica.
§1 Há uma passagem na Apresentação feita por Leda L. Ferreira de A Loucura do Trabalho que sintetiza bem ao gosto da Psicodinâmica de...
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